Itep vive no tempo da faca-peixeira...


Publicação: 01 de Abril de 2012 às 00:00
Ricardo Araújo - repórter

Falta de estrutura, corpos enterrados por engano, aparelhos sucateados, laudos necroscópicos incompletos. Os antigos e aparentemente insolúveis problemas do Instituto Técnico-Científico de Polícia (Itep/RN) serão tema de uma audiência pública na próxima terça-feira. Representantes do Ministério Público Estadual (MPE), Sindicato dos Policiais Civis e Servidores da Segurança Pública (Sinpol), servidores de carreira do Instituto, direção geral e coordenadores, discutirão as históricas e também atuais dificuldades do órgão. Durante a audiência, o promotor responsável pela Controladoria Externa da Atividade Policial, Wendell Beetoven Ribeiro Agra, irá apresentar o resultado das investigações iniciadas há seis anos, com a instauração do Inquérito Civil nº 001/2006.
Instrumento de trabalho dos legistas: Serra, faca-peixeira, trinchetes e martelo para fazer necropsia
“O Itep é hoje o órgão mais desorganizado e ineficiente do sistema estadual de segurança. O Instituto não tem lei orgânica, que é a definidora da estrutura do órgão. Hoje é feito por leis antigas e não se adequam à atual Constituição”, declarou o promotor.

Ele cita que o órgão não dispõe de novas técnicas periciais para o esclarecimento de crimes complexos, cuja ajuda da ciência e da tecnologia são indispensáveis. “Com o uso da ciência, os depoimentos testemunhais chegam a ser até desnecessários”, afirmou Wendell. Para os promotores que atuam em processos criminais, a prova científica é imprescindível à elucidação de um crime e, consequentemente, à incriminação de um suspeito. Tanto para Wendell Beetoven como para o presidente do Sindicato dos Policiais Civis e Servidores da Segurança Pública (Sinpol), Djair Oliveira, o combate à criminalidade está diretamente ligado ao funcionamento otimizado da Polícia Técnica.

As cobranças relacionadas à melhoria da estrutura do Itep em todo o Rio Grande do Norte são antigas. O Ofício nº 065/2003, assinado pelo então promotor de Justiça do Município de Cruzeta, Morton Luiz Faria de Medeiros, apontou falhas nas perícias criminais em um homicídio ocorrido na cidade e pedia providências imediatas para a base do Itep em Caicó. “Dentre os principais problemas, figuram a ausência de foto do cadáver, a insistência do uso da figura do “perito revisor”, a ausência quase completa da análise criminalística, morosidade na realização de exames e precariedade de informações consignadas no laudo”, relatou o promotor à época.

Quase dez anos depois, a situação é praticamente a mesma e não se resume ao Instituto baseado em Caicó. Em Natal e Mossoró, os necrotomistas utilizam facas peixeira para realizarem a abertura dos corpos a serem autopsiados. Este, porém, não é o único improviso. Na sede do Itep, em Natal, os aparelhos utilizados para a realização dos exames cadavéricos são acondicionados em locais sem proteção. No Laboratório de Toxicologia, as seringas utilizadas em testes para identificação de substâncias voláteis em amostras de sangue, vísceras, urinas e tecidos (compostos celulares), são descartadas em uma garrafa pet.

“O Itep funciona hoje como funcionava há 50 anos”, ressalta Wendell Beetoven. De acordo com ele, “à medida em que o Instituto funciona mal, somente o criminoso é quem se beneficia”. Além dos problemas relacionados aos Setores de Criminalística, Toxicologia e Perícias, há também o acúmulo de serviço na Coordenadoria de Identificação (Codim). Quase todos os dias, uma longa fila se forma na calçada do prédio formada basicamente por pessoas que necessitam retirar a segunda via do Registro Geral (RG). Para o diretor-geral do Instituto, Nazareno de Deus Medeiros Costa, a situação melhorou um pouco nos últimos meses.

“Ainda é muito difícil, mas melhorou. O principal problema é estrutural. O prédio se tornou pequeno com uma estrutura suficiente”, ressaltou o diretor. Ele aponta como melhorias, a aquisição de uma nova câmara frigorifica para acondicionamento dos corpos, computadores, impressoras e 14 veículos (entre caminhonetes e carros de passeio utilizados nas perícias).

Sindicato quer trabalho sem interferências

A Lei Estadual nº 4.526 de 17 de dezembro de 1975, transformou o então Instituto de Medicina Legal e Criminalística (IMLEC), no atual Instituto Técnico-Científico de Polícia (Itep). A mudança, porém, não ultrapassou as barreiras da nomenclatura do órgão. O Itep funciona num prédio construído à época da administração do interventor Mário Câmara, entre 1934 e 1935 e já não suporta mais a demanda de serviços que aumentou com o passar dos anos. Além de melhorias na estrutura, os servidores cobram a aprovação de um conjunto de leis próprio do Itep.

O antigo IMLEC foi criado em 1964 e extinto onze anos depois. Com a mudança do nome ocorreu, também, a transformação em órgão de regime especial e com jurisdição em todo o território potiguar. Até hoje, porém, quase meio século depois da sua fundação, a criação de um Estatuto próprio ainda é um pleito dos servidores. “O Itep ainda não foi criado de fato”, destacou o presidente do Sindicato dos Policiais Civis e Servidores da Segurança Pública (Sinpol/RN), Djair Oliveira.

Ele disse que, por muitos anos, o Instituto foi cabide eleitoral de muitos governantes que mudavam o sistema gerencial do órgão sempre que achavam necessário. De acordo com Djair, cerca de 60% do quadro funcional atual é composto por servidores relocados de outras Secretarias Estaduais. “Muitos deles foram cedidos para o Itep como forma de punição”, disse Oliveira.

Para os servidores de carreira do Instituto, a aprovação do Estatuto pelo Governo do Estado preencherá uma lacuna de anos de luta pela implementação das leis próprias do órgão e proporcionará mudanças no sistema funcional, além de transformá-lo numa autarquia. “Nós queremos que o Itep seja um órgão mais sério, que possa desenvolver um bom trabalho sem nenhuma interferência externa”, ressaltou Djair Oliveira. Para ele, ao longo dos anos, o Governo do Estado tratou o Instituto com descaso.

Estatuto do Itep está em fase de análise na Sesed

O processo nº 125.553/2010-7 da Secretaria de Estado da Segurança Pública e da Defesa Social (Sesed), é o anteprojeto de lei complementar que “dispõe sobre a Lei Orgânica e o Estatuto da Perícia Técnico-Científica de Polícia do Estado do Rio Grande do Norte”. Atualmente, o documento está sob a responsabilidade do titular da Sesed, Aldair da Rocha, para ser analisado e posteriormente discutido com a classe para, num momento posterior, ser apresentado à governadora Rosalba Ciarlini para receber o crivo de aprovação ou reprovação. “É possível mudar. Mas não há interesse”, destacou Djair.

O anteprojeto tem como objetivos principais instituir a Perícia Técnico-Científica de Polícia do Estado do Rio Grande do Norte em substituição ao atual Instituto Técnico-Científico de Polícia (Itep). Se a substituição for aprovada, o órgão será uma “autarquia estadual dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira, vinculado à Sesed”. Será responsável pelo exercício das funções de perícia técnico-científica no que se refere à materialidade e autoria visando a elucidação das infrações penais destinadas ?às áreas de medicina legal, odontologia legal, criminalística, identificação civil e criminal e de laboratório.

Além disso, prevê a criação do quadro de pessoal próprio, com o disciplinamento dos aspectos relacionados às competências de peritos médico-legistas, peritos odonto-legistas, peritos criminais, assistentes técnicos-forense, papiloscopistas forense, agentes técnicos forense. Além do ingresso e ascensão na carreira, formas de provimento derivado, garantias, prerrogativas, direitos e regime disciplinar. A aprovação do estatuto ainda é, porém, uma incógnita.

Conforme o presidente do Sinpol esclareceu, os cargos de perito criminal, médico legista, odontólogo legal, dentre outros, não existem oficialmente. Sobre as mudanças necessárias ao órgão, Djair cobra mais ênfase do Ministério Público Estadual. “É preciso que o Ministério Público tome ações mais enérgicas em relação ao Governo do Estado para que as promessas saíam do papel”, ressaltou.

Documentos citam falhas de identificação

Um dos anexos do Inquérito Civil nº 001/2006 do Núcleo de Controle da Atividade Policial (Nucap), relaciona uma série de irregularidades identificadas no Instituto Técnico-Científico de Polícia (Itep/RN) ao longo dos anos. A maioria das falhas refere ao sepultamento irregular de corpos que foram recolhidos pelo Instituto com identificação e encaminhados para sepultamento como se fossem não identificados (N.I.).

O documento cita o exemplo de Edmundo Pessoa Cavalcanti, cujo corpo foi recolhido pelo Instituto no dia 7 de setembro de 2009 com identificação e sepultado dois dias depois como não-identificado (N.I.). O erro só foi detectado quando a irmã da vítima, Eliane Pessoa de Oliveira, reclamou o corpo do irmão junto ao órgão e levou o caso ao conhecimento do Ministério Público Estadual. Somente após uma autorização judicial para a exumação do cadáver, a família pode realizar o funeral.

Consta ainda nos autos, o Termo de Reclamação nº 006/2004. O autônomo Ivanildo Alves Patrício, morto em janeiro de 2004 em decorrência de uma descarga elétrica em Ponta Negra, foi enterrado pelo Itep como não-identificado. De acordo com o relato de familiares anexado aos autos, a vítima havia saído de casa portando documentos. O Itep reconheceu a identificação do homem quando questionado a respeito do sepultamento irregular. Dois dias depois, os restos mortais de Ivanildo foram exumados e entregues aos familiares.

Itep recebe corpos de pessoas mortas por causas violentas

De acordo com o Código Penal brasileiro, a vítima de morte não natural deve ser encaminhada ao Instituto para que o corpo seja necropsiado. Médicos não-legistas são impedidos de expedir um atestado de óbito, documento insubstituível para realização de sepultamentos, cremação, liberação de seguro de vida e até mesmo traslado do corpo em caso de sepultamentos em outros estados. Nos casos em que os médicos não conseguem identificar a causa da morte de algum paciente ou a morte seja juridicamente suspeita, o cadáver precisa ser enviado ao Itep para ser investigado.

Ainda de acordo com a lei, os corpos devem permanecer sob a responsabilidade do Instituto por um período máximo de 45 dias. De acordo com os parágrafos 2º e 3º, inciso 2º, artigo 3º, da Lei 8.501, apenas os cadáveres de morte natural devem ser encaminhados a estudo e pesquisa em escolas de Medicina. Quase todos os corpos não identificados que estão hoje no Itep são de homens cujas mortes foram violentas e/ou à esclarecer. Os exames realizados no Laboratório de Toxicologia do Itep/RN são imprescindíveis à identificação da causa mortis.

No Laboratório de Toxicologia, é possível realizar diversos exames para identificação de substâncias ilícitas nos corpos, por exemplo. Os bioquímicos extraem parte das vísceras, tecidos (composto celular) ou sangue para serem analisados microscopicamente. No Setor de Criminalística, os peritos vasculham pistas para a identificação do assassino através da realização de perícias em armas e projéteis recolhidos em cenas de crime ou retirados dos corpos. Há ainda, os serviços de Odontologia Legal e Psicologia Forense, que subsidiam a elucidação de crimes de maior complexidade, identificam ossadas e emitem laudos psicológicos de assassinos e vítimas de violência.

Bate-papo

Nazareno Costa, diretor-geral do Itep/RN

Problema principal é a falta de espaço para trabalhar

De que forma o senhor analisa a situação do Itep/RN atualmente?

Já esteve pior. Teve uma melhoria, mas ainda continua muito difícil. Apesar de termos um volume grande de funcionários, ainda temos deficiência.

Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelo Instituto?

Principalmente estrutural. Haja vista que este prédio (sede na Ribeira) foi construído na década de 1930. O Itep inchou. Aqui tem vários labirintos, a gente fazendo divisória para acomodar o pessoal. Então o problema principalmente é estrutural, físico.

E isto tem como consequência?

Daí o atendimento não ser digno para a sociedade. Porque existe aquela fila ali (referindo-se à fila formada na área externa da Coordenadoria de Identificação – Coid)? Devido à estrutura deficiente, nós orientamos que fizessem distribuição de ficha para evitar tumulto interno. Mas as pessoas, como são imediatistas, fazem aquela fila na rua.

Existe um projeto para a construção de outro prédio?

Nós tivemos uma reunião com a secretária de Infraestrutura (Kátia Pinto), levando sugestões para enquanto não constrói um novo prédio para o Itep (Natal) para fazer uma reforma aqui para atendermos aos exames de DNA. Temos os técnicos, mas não temos o laboratório com os respectivos equipamentos. Quando a gente quer fazer um exame de DNA temos que ir para Salvador. Não temos os equipamentos, nem temos estrutura.

O acondicionamento dos corpos na temperatura ideal foi um problema que perdurou por anos no Instituto. Hoje, a câmara frigorífica do necrotério funciona a contento?

Este é um problema que está resolvido. A vida útil da outra câmara foi de 33 anos. Então já não havia mais nem conserto. Como eu sou o médico mais antigo daqui e conheço bem, eu comecei a priorizar a aquisição de uma nova câmara frigorifica. Aumentei a capacidade de 18 para 21 gavetas e está funcionando a contento.

Ainda ocorrem problemas de superlotação?

Não superlotou mais. Isto era uma questão de gestão. Quando eu cheguei, encontrei uma câmara frigorífica que era para 18 corpos e tinha 21. E o pior é que tinha corpos de seis meses (à espera de identificação). Hoje nós temos o cuidado de fazer a rotatividade. São 21 vagas e os cadáveres não irão chegar aqui no mesmo dia. Chegam dois hoje, sete dias depois chegam mais cinco. Então a lei nos dá o direito de, após 30 dias, a gente mandar sepultar. Agora são sepultados catalogados, dignamente. Ficam amostras de tecidos (celulares) dos cadáveres. Porque se algum dia chegar um familiar, a gente colhe o material para fazer DNA e se for constatado se é parente de algum daqueles que foi sepultado, a gente informa.

O fato de servidores do Itep enterrarem corpos identificados irregularmente, como já ocorreu, poderá se repetir?

Não aconteceu na minha gestão. O ser humano pode falhar também. Pode ser que algum funcionário, sem nenhuma maldade, sem intenção, tenha liberado. Mas estamos em cima para que isso não aconteça para evitar exumação, que é complicado.

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